Wednesday 15 December 2010

Religião e a Mente Bicameral

Um dos responsáveis pela minha recente alteração de posição relativamente ao papel da religião na sociedade humana - Alister Hardy. Tudo por causa da entrevista que dele ouvi nesse site.

De fato muito se tem dito que a religião se trata de um problema, mas como diz Hardy, "O homem é um animal religioso".

Em A Origem da Consciência no Colapso da Mente Bicameral, Julian Jaynes mostra como a religião sempre foi um meio de organização social, e que as perspectivas sobre os deuses nem sempre foram as mesmas. A idéia principal do livro se mostra efetivamente apocalíptica. Tal qual como afirma William Harrington na contracapa do livro, a obra de Jaynes torna "estantes inteiras de livros obsoletas". E talvez sim.

A idéia principal passa pelo seguinte: e se o homem nem sempre tiver tido consciência de suas ações? E se a consciência não for, como pensava Darwin, um fator evolutivo, mas cultural? Através de diversos relatos e provas consistentes, Jaynes mostra que a consciência humana não terá começado até à cinco mil anos atrás. E o que aconteceu portanto, à cerca de cinco mil anos?
A resposta é, a invenção da escrita.

Então o que haveria antes disso? Segundo Jaynes, antes do "eu", havia a mente bicameral.
A mente bicameral, ou mente de duas câmeras, consistia no seguinte: consciência se dividia em duas partes distintas, o deus e o homem. A parte direita do cérebro alucinava o "deus" (que sempre representava uma entidade superior ao que tinha a alucinação) e a parte esquerda recebia as ordens dessa alucinação. Os homens não pensavam no sentido que hoje entendemos. Respondiam simplesmente a estímulos alucinatórios.

Jaynes dá o exemplo da Ilíada, em que nenhum dos personagens pensa ou interioriza o pensamento, mas simplesmente obedece aos deuses. Temos vivendo interpretando os deuses como uma coisa exterior, mas e se representarem antes uma coisa interior?

O livro de Jaynes faz qualquer pessoa como eu, que duvida da religião, pensar duas vezes. E à medida que se lê, se compreende o porquê das coisas terem chegado ao ponto que chegaram. Quando a mente bicameral deu origem à consciência moderna, houve caos.
Muita gente morreu. As pessoas não compreendiam porquê os "deuses" as tinham "abandonado" e se gerou na mente coletiva o pensamento de que os deuses partiram porque a humanidade tinha feito algo de incorreto. Aí se geraram esses conceitos de pecado, das coisas que os deuses querem que façamos e não façamos. Se gerou o mito de que os deuses tinham partido para uma morada "no céu" e então se geraram os intermediários alados entre deuses e homens, também chamados de anjos. Tudo isso faz enorme sentido.

Se compreende então também o porquê da existência da autoridade religiosa, como padres. No momento do colapso da mente bicameral, nem todos os homens a perderam. Durante talvez um milênio continuaram a existir este tipo de mente, mas em menor escala. Estas mentes talvez fossem tidas como "oráculos" e lhes era dada uma autoridade religiosa. Em suas mentes bicamerais, eles conseguiam ainda "contactar" com os deuses, e as pessoas, sofrendo o choque de uma alteração mental, procuravam essas pessoas para orientação.

Existem fatos bastante curiosos sobre a posição dos deuses em relação aos homens há cinco mil anos. Na Suméria, desenhos representativos dos homens e deuses nunca mostravam os homens como hoje, se ajoelhando perante os deuses, lhes pedindo clemência. Pelo contrário, o homem era visto antes de pé, sendo que o deus se sentava numa cadeira o aconselhando sobre o que fazer. Com o colapso da mente bicameral, se originou no mundo o que temos hoje. A noção de pecado, de penitência.

O que o colapso da mente bicameral coloca em xeque? Uma série de coisas. Por exemplo, na minha opinião, a história se torna obsoleta. Sim. Nos ensinaram que "a história se repete". Mas e se não repetir? Se a consciência humana for sempre sofrendo alterações, a história dos homens nunca se repetirá. Mais: me parece inútil olhar para exemplos históricos passados porque suas circunstâncias devem se entender sempre como diferentes das nossas. O que eu acho que esse colapso nos ensina sim algo que há muito devíamos ter aprendido, a viver no presente.

Isso pode indicar que outros colapsos, ao longo da história, irão existir. O colapso de 2012 indicado por McKenna e narrado em Os Invisíveis por Grant Morrison pode acontecer. "O complexo de múltipla personalidade como opção de vida", pode se tornar algo real.

E agora voltando a Alister Hardy, ele fala nessa entrevista de coisas bastante curiosas. Por exemplo, como o homem parece sempre procurar aconselhamento em algum ser superior. Com o colapso da mente bicameral, e na ausência de alucinações, a noção de "deus" se tornou abstracta. "Deus" perdeu sua antropomorfização e se tornou para a mente humana uma entidade diferente, mais complexa. Hardy compara a relação dos homens com "deus" com a relação que o cão tem com os homens. Esta é uma relação sobre a qual sei muito pouco, mas me parece muito curioso, como indica Hardy, que a certa altura os cães terem deixado de seguir o líder de sua matilha para seguir um ser de outra espécie. Isso me parece muito curioso.

Muito curioso também as palavras inglesas para cão e deus (dog e god) se mostrarem uma inversão uma da outra. Mera coincidência? Eu lhe chamaria sincronicidade.

No discurso de Hardy se encontra algo que comecei a pensar recentemente. Que o problema da religião não está na religião em si, mas nos seus líderes. E realmente, a diferença entre um Papa e um Dalai Lama me parece atroz. Como diz Hardy, "se Jesus Cristo vivesse hoje em dia, dificilmente seria um cristão". Mas esse fenômeno, a que chamarei a decadência das elites, existe em todas as outras áreas.

Gosto do que Alain de Botton diz nessa palestra no Ted Talks. Que pela primeira vez na história, vivemos numa sociedade em que o homem se venera a si mesmo. Esta nova religião, também conhecida como narcisismo, talvez seja um dos motivos de nossa decadência. Ela deu origem à aberração da chamada "celebridade", mas nem todos os egos parecem estar preparados para enfrentar semelhante coisa. Portanto, alguns entram em decadência.

This is my truth, tell me yours.

3 comments:

  1. Parece que algumas tradições criaram seus próprios hacks de atalho para acessar a parte deus da mente bicameral. A subjetividade das histórias zen, i Ching, tarot, hakais... Parecem todas apontarem para uma escuta dessa parte mais interna da mente.

    Kenneth, ainda estás por aí? Conheces algum texto relacionando essas ferramentas para acessar essa parte mais interna da mente?

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  3. A entrevista do Alister Hardy não pode ser mais encontrada no endereço citado (www.alisterhardysociety.org), o novo endereço é: www.studyspiritualexperiences.org. Neste link fala sobre a mudança do nome da organização e do endereço do site: https://iarf.net/alister-hardy-society-for-the-study-of-spiritual-experience-ahssse/

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